(artigo jurídico) Concentração x Hora-extra

Concentração x hora-extra.

Concentração é o período em que o atleta fica recluso em um local determinado pelo clube antes da disputa de uma partida. A intenção é manter o atleta focado no jogo a ser disputado, bem como manter sob o controle do empregador a sua alimentação, descanso e treinamento.

Para Domingos Sávio Zainaghi: “a concentração serve para que o clube-empregador exerça uma vigilância sobre o empregado-atleta, no sentido deste alimentar-se adequadamente, obedecer a hora de sono, não ingerir bebidas alcoólicas ou outras drogas nocivas ou proibidas aos jogadores de futebol.[1]

A lei 6354/76, no art. 7º, prevê um período de concentração não superior a três dias por semana. Em Portugal e Espanha o limite é o mesmo: 36 horas para os jogos disputados em campo próprio e 72 horas para as partidas “fora de casa”. Este limite está estabelecido em sede de convenção coletiva.

A grande questão é: estas horas que o atleta passa concentrado podem ser computadas para efeitos de limite da jornada de trabalho? Se o atleta está à disposição do empregador, o período de concentração é trabalho? E sendo assim, seria devido o pagamento de horas extras?

A doutrina não é pacífica em nenhum sentido, nem tampouco a jurisprudência. Mas, o entendimento majoritário é de que este período de concentração não seja computado na jornada laboral comum para efeitos de pagamento do adicional de horas extras.

No entendimento minoritário encontramos Ralph Cândia, segundo ele: “A concentração se traduz em resguardo costumeiro dos atletas e peculiar às competições de importância, daí ter sido consagrada na legislação em causa. Se afigura útil para a obtenção de um melhor rendimento dos jogadores. O prazo de três dias estabelecido como limite, ao nosso ver, não pode deixar de ser considerado como de trabalho normal e, portanto, computável na jornada semanal já examinada, de sorte que, somado às horas colocadas, à disposição da concentração, não ultrapassem as quarenta e oito horas semanais, caso em que o excesso será considerado trabalho extraordinário, com incidência do adicional de 50% sobre as horas excedentes (CF-88, art. 7º, item XVI)”.[2]

No sentido contrário, encabeçando o entendimento majoritário da doutrina, está Domingos Sávio Zainaghi, que escreve: “Uma vez que, face às peculiaridades da profissão de atleta de futebol e pelo fato de a concentração ter sido deliberadamente excluída pelo legislador do art. 6º da lei n. 6.354/76, conclui-se que não são computadas como jornada suplementar as horas em que o empregado estiver concentrado. Até porque, aqui caberia uma pergunta: estando dormindo, o atleta estaria recebendo como horas extras o período de sono?”.[3]

Mas apesar de majoritário, este entendimento não pode ser considerado pacífico, nem tampouco consolidado. A discussão sobre o cabimento ou não de horas-extras pelo período em que o atleta permanece concentrado merece uma análise ainda mais profunda da que nos propomos fazer. Afinal, se o atleta encontra-se sob as ordens do empregador, que determina até mesmo o seu horário de sono, é difícil entender que este período não seja de trabalho. Mas, por outro lado, se o trabalho do atleta é a atividade desportiva, também não parece certo o entendimento de que ele está trabalhando enquanto se diverte com jogos eletrônicos, sinuca ou pebolim com seus colegas.

O grande problema é o excesso de interferência, de controle, que o empregado tem sobre o atleta. Sobre isto, importante é o depoimento do próprio atleta, muito bem representado pelo excepcional Pelé, que declarou: “O contrato de trabalho do atleta tem peculiaridades, entre elas o caráter muito amplo e intenso da subordinação, que se estende não só à atividade esportiva, incluindo treinos, concentração e excursões, mas também aos aspectos pessoais, como alimentação, bebidas, horas de sono, peso; aos aspectos mais íntimos, como o comportamento sexual; mais convencionais, como a vestimenta e a presença externa e, ainda, aos aspectos mais significativos, como declarações à imprensa”.[4]

Este tipo de controle, esta heterodisponibilidade, tão presente nesta relação laboral, é o que faz das horas extras relativas ao período de concentração um tema tão polêmico. A jurisprudência também não é pacífica em nenhum sentido. A favor do pagamento de horas extras temos:

“Horas extras. Jogador de futebol. É devido o pagamento de horas extras ao jogador de futebol, por todo o período que ficou na concentração, sem compensação de horário à disposição do empregador”.[5]

Mas, a maioria das decisões é em sentido contrário:

Jogador de futebol. Horas extras. A concentração do jogador de futebol é uma característica especial do contrato de trabalho do atleta profissional, não se admitindo o deferimento de horas extras neste período”;[6]

“Horas extras. Jogador de futebol. Período de concentração. A concentração é obrigação contratual e legalmente admitida, não integrando a jornada de trabalho, para efeito de pagamento de horas extras, desde que não exceda de 3 dias por semana. Recurso de revista a que nega provimento.”[7]

A lei não é clara quanto ao pagamento de horas extras ao jogador de futebol quando este se encontra em regime de concentração. Por isso a disparidade nas decisões é justificável. Afinal, a concentração é uma peculiaridade desta relação laboral, faz parte da profissão. Mas, por outro lado é difícil enxergar o tempo que o atleta se encontra concentrado como um período de descanso e não de trabalho. De fato, a pergunta que surge é: a especificidade da relação laboral desportiva é tanta e suficiente para excluir o pagamento de horas extras do período de concentração a que os atletas se submetem?

Afinal, há aplicação subsidiária da CLT nos casos em que a lei específica é omissa, mas deve se respeitar as peculiaridades desta relação de trabalho. Portanto, apesar do regime de concentração extrapolar os limites da jornada laboral, não devem ser pagas as horas extras por isso. Fato é que, se o período de 72 horas concentrado for computado como hora trabalhada teremos só aí um excesso de 28 horas sobre o limite da jornada semanal.

É aqui que entra a questão levantada por Zainaghi: “as horas dormindo são horas trabalhadas?” E as horas de descanso e divertimento são horas trabalhadas? Assim, se formos computar apenas as horas efetivamente trabalhadas durante a concentração (treinos, palestras, reuniões) não estaremos diante de nenhuma controvérsia. Então, apesar de estar à disposição do empregador, o período de concentração não é período de trabalho, pois o empregado não passa todo esse período trabalhando.

Tal polêmica já não existe em Portugal ou Espanha, tão somente porque as leis desses países estabeleceram, expressamente, que o período de concentração e viagens não será computado para efeitos de limites do período normal de trabalho.

A redação do art. 15º da Lei n.º 28/98 é bastante interessante, ao mesmo tempo em que afirma que se considera compreendido no período normal de trabalho do praticante desportivo o tempo despendido em estágios de concentração e em viagens que precedam ou se sucedam à participação em provas desportivas (Art. 15º/1, c), também afirma que estes não relevam para efeitos dos limites do período normal de trabalho (art. 15º/2).

Bastante interessante é a explicação de João Leal Amado sobre o que a lei quer dizer: “de acordo com a lei, o tempo de estágios/viagens é tempo laboral, mas, no fundo, é como se não fosse… Ou, talvez melhor: porque é tempo laboral, o praticante permanece adstrito à subordinação própria do contrato de trabalho; mas porque esse tempo não conta, o praticante não pode valer-se das regras limitativas da duração do trabalho…”.[8]

A mesma solução é dada pelo RD 1006/1985, que afirma no artículo 9.3: “No se computarán a efectos de duración máxima de la jornada los tiempos de concentración previos a la celebración de competiciones o actuaciones deportivas, ni los empleados en los desplazamientos hasta el lugar de la celebración de las mismas, sin perjuicio de que a través de la negociación colectiva se regule el tratamiento y duración máxima de tales tiempos”.

Com esta redação legal fica fácil afirmar que o período de concentração não pode ser considerado para efeitos de pagamento de horas extras. Diferente do que ocorre no Brasil, cuja lei não solucionou o problema, em Portugal e Espanha a polêmica sequer existe, já que, como vimos, o legislador fez questão de colocar expressamente uma regra excluindo o tempo de concentração dos limites do período normal de trabalho.

No Brasil, portanto, a solução é sempre interpretativa, havendo razões válidas para qualquer tese ser aceita. A meu ver, tendo como base o entendimento das legislações alienígenas, em especial a espanhola e a portuguesa, a melhor solução é mesmo a de não se aceitar as horas extras referentes ao período de concentração. A estrutura da relação laboral desportiva tem uma lógica peculiar que ultrapassa a barreira territorial, não é à toa que as leis são similares em diversos pontos. Sendo assim, parece ser o mais sensato aplicar a interpretação do legislador português e espanhol também aos casos brasileiros.


[1] ZAINAGHI, Domingos Sávio, Os atletas profissionais de futebol no direito do trabalho. cit. Pág. 91.

[2] CÂNDIA, Ralph. Comentários aos contratos trabalhistas especiais, 3ª Ed. São Paulo: Ltr, 1995. Pág. 123. É importante ressaltar que o limite de 48 horas semanais a que o autor se refere foi alterado para 44 horas com o advento da Constituição de 1988.

[3] ZAINAGHI, Domingos Sávio. Nova legislação desportiva. Cit. Pág. 27.

[4] Pelé – in Revista CONSULEX – Ano IV – nº 38 – Fevereiro/2000 – págs. 30/39.

[5] TRT 9ª região. Paraná. Acórdão nº 236/82 de 26.02.82. Relator: Indalécio Gomes.

[6] Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Paraíba. RO 783/88 de 05.01.89. Relator: Paulo Montenegro Pires.

[7] Tribunal Superior do Trabalho – RR. 405769 – 4ª turma. Relator: Ministro Antônio José de Barros Levenhagem. Diário Judiciário de 05.05.00

[8] AMADO, João Leal, Contrato de trabalho desportivo anotado, cit. Pág. 55.